domingo, 22 de novembro de 2015

Cicatrização

Ela nutria uma grande paixão por aquele rapaz. Passeavam de mãos dadas pelo parque, dividiam a pipoca no cinema e se viam todo final de semana. Mas um dia, como um impiedoso psicopata, ele enfiou uma faca afiada em seu coração. Como se não bastasse, rasgou-lhe o peito e arrancou o músculo, enterrando-o no jardim.
Ela ficou meses atônita, como que sem vida. O mundo havia perdido as cores, os aromas, os sabores, os sons e as texturas de que tanto gostava: o tom alaranjado do pôr do sol, o cheiro do pão quentinho na padaria, o sabor irresistível do sorvete, o canto do pássaro no quintal, o toque macio do casaco de lã.
Um dia, outro jovem chegou ao jardim. Sentou-se no banco e ficou admirando as plantas e as flores primaveris. Ao notar a terra remexida, não evitou o impulso de analisa-la de perto. Desenterrou um coração quase despedaçado. Levou-o à torneira e limpou delicadamente. Percebeu o rasgo diagonal em seu centro e costurou com agulha e linha. Recuperou-lhe o vigor e procurou a quem pertencia.
Ficou semanas em busca do dono daquele coração maltratado. Um dia, na fila do supermercado, viu a moça à sua frente esquecer uma sacola de compras. Apressou-se para lhe devolver. Quando ela se virou, apática e pálida, descobriu que era a dona daquele coração. Estendeu-lhe a sacola de compras esquecida e lamentou mentalmente por não estar com o coração no momento.
A partir daquele dia, não saía de casa sem o coração da moça. Voltou tantas outras vezes ao mesmo supermercado, na esperança de reencontrá-la. Inesperadamente, a viu na rua, vindo na direção oposta. Sua respiração parou e não sabia como agir. Impulsivamente, chamou-lhe, dizendo que algo havia caído de seu bolso. Quando ela se virou para olhar, ele entregou o coração. Ela sorriu e o colocou de volta no peito. Agradeceu e seguiu seu caminho.
Nunca mais se viram, mas desde então a moça voltou a sentir o mundo do jeito que a fascinava.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Um clássico revisitado


Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) é um dos meus filmes favoritos desde a primeira vez que vi - acho que foi em 2007. Já tinha assistido novamente uns 4 ou 5 anos atrás (tenho em DVD), mas queria muito conferir no cinema, já que é uma experiência cinematográfica completa - direção, roteiro, fotografia, atuações, direção de arte, figurinos...
Claro que o fato de ter meu ator favorito (o extraordinário William Holden) e uma das melhores personagens de todos os tempos (a diva Norma Desmond, interpretada pela magistral Gloria Swanson) o coloca na lista de prioridades. O roteiro soberbo de Billy Wilder (que também dirige), Charles Brackett e D.M. Marshman Jr. , ainda por cima, é um dos melhores da história do cinema (entra fácil num top 3). Justifico isso tudo porque, na mesma semana, o Clássicos Cinemark trouxe outro filme do meu coração, Um Sonho de Liberdade, mas deixei de revê-lo justamente por causa de Crepúsculo dos Deuses.
 
Mas, este post tem o intuito de ir além da minha adoração a essa película. E, aviso com antecedência, que o texto abaixo é repleto de SPOILERS. Portanto, se ainda não assistiu e pretende vê-lo, não leia os parágrafos abaixo.
 
Crepúsculo dos Deuses sempre me chamou atenção pelo cinismo, sarcasmo e ironia. É um pacote completo com estes substantivos abstratos. Porém, desta vez, o filme me soou mais melancólico. Confesso que me senti até mesmo perturbada. Todos os personagens são humanos. Não há vilões, mas pessoas que possuem grandes dilemas, alguns mais sérios do que outros. Há atitudes questionáveis, mas muito sentimento.
A começar por Joe Gillis, um roteirista em crise de criatividade e cheio de dívidas. Bonito e charmoso, é o cinismo em pessoa. Por acaso, ele conhece a diva Norma Desmon, uma ex-estrela de cinema. Joe deve meses de aluguel e seu carro será confiscado para cobrir suas dívidas. Ele já caiu na real que não lhe resta nada além de abandonar Hollywood e retornar à sua cidade natal, no interior de Ohio, e voltar a ser um João Ninguém em um subemprego monótono. Mas é o acaso que lhe inspira ambições.
Norma Desmond, o acaso, é uma milionária de 50 anos de idade, que foi a maior estrela do cinema mudo. Com o advento do som, ela, assim como dezenas de outros astros de sua época, foram engolidos pelo ostracismo. Mas Norma ainda tem fãs: recebe centenas de cartas por mês, todas de admiradores sedentos por seus autógrafos. Ela continua rica graças a investimentos que rendem milhões (petróleo, por exemplo). No entanto, por trás dessa mulher poderosa, esconde-se um ser humano solitário, dependente e depressivo.
Joe se aproveita das fraquezas de Norma. Ela é atraída pelo seu charme irresistível e admira seu talento (ele a ajuda a reescrever o roteiro de um grandioso filme bíblico que marcará o retorno da diva às telas). Apesar de ele se incomodar com a personalidade possessiva de Norma, acaba cedendo justamente por sua ambição - pretende conseguir o que quer e abandonar a mansão da milionária assim que puder.
Sendo um personagem tridimensional, Joe não é um mero aproveitador ou gigolô: ele sente culpa pelo que faz. Quando abandona Norma, fica sabendo que ela tentou cometer suicídio. Imediatamente, volta para vê-la, pois não quer que ela fique mal. Sente compaixão, não quer engana-la. Mas suas mentiras enrola ambos.
Norma, por sua vez, é manipuladora. Sua paixão por Joe é verdadeira, mas ela sofre de problemas psiquiátricos (parece ser bipolar) e sempre foi acostumada a conseguir o que quer. Sabe que Joe precisa de seu dinheiro, e não se importa em compra-lo - contanto que ele não a abandone e a ajude a curar sua solidão, ela faz o que for preciso para tê-lo  por perto.
Max Von Mayerling, o mordomo, foi o primeiro marido de Norma e ainda a ama após décadas. Ex-diretor de cinema (foi ele quem a revelou), humilhou-se a ponto de suplicar para servi-la a vida inteira. É ele quem cria o "mundo de fantasia" na qual Norma habita: as cartas de fãs são todas dele; ele esconde a verdade sobre a possível volta da ex-estrela às telas e insiste para que Joe não a abandone. Para ele, o bem-estar de Norma é o que importa: não quer vê-la sofrer nem se autodestruir.
O trio principal é o que suscita mais reflexão. O espectador tende a julgar cada um deles, cada atitude. Mas, acaba sendo impossível, pois quando você conhece a história pessoal dos personagens, acaba entendendo suas ações - sem concordar com elas, obviamente.
Por fim, há uma personagem coadjuvante que cativa por sua inteligência e personalidade forte: a jovem roteirista Betty Schaefer, namorada de Artie, melhor amigo de Joe. Betty convida Joe a escrever um roteiro derivado de um projeto rejeitado dele. Escondido de Norma, ele passa noites ao seu lado, trabalhando - o noivo dela é assistente de direção e está filmando em outro estado. A relação deles é estritamente profissional. Porém, chega um momento em que eles ficam mais próximos e, um dia, Betty confessa aos prantos que foi pedida em casamento, mas não ama o noivo: ela está apaixonada por Joe. E ele corresponde. De uma relação sem malícia alguma surge uma paixão complicada, pois nenhum deles quer ferir Artie. Por outro lado, Joe não se importa tanto com os sentimentos de Norma, afinal sente que está cumprindo sua obrigação de fazer-lhe companhia.
 
Resumi ao máximo aquilo que me criou um sentimento de melancolia na história. Paixões não correspondidas e paixões não planejadas. Uma mulher depressiva capaz não apenas de se destruir, mas destruir vidas alheias (ela assassinou Joe quando percebeu que não poderia tê-lo). Seres humanos perdidos que dão sua vida pelo dinheiro (Joe) ou por um amor não correspondido (Max). Não é Hollywood, não é a década de 1950: essa história poderia se passar em São Paulo, no ano de 2015.