- Lacuna... - disse silenciosamente, aos prantos, enquanto recordava alguns acontecimentos recentes.
Mas a ciência não havia revolucionado a tal ponto. A inteligência artificial saía das páginas da literatura de ficção-científica e se tornava parte do cotidiano de milhares de pessoas. O transplante de face já era encarado como um procedimento médico possível. Enquanto isso, apagar memórias seletivas estava longe de se tornar uma realidade.
Com os olhos fechados, fixou-se em uma lembrança. Apertando as pálpebras, tentou movê-la de um lado da mente para o outro, como se uma tela mental mostrasse tal procedimento. Fazia força, mas a recordação insistia em permanecer ali, imóvel. Segurou a respiração e rememorou outra vez, como se pressionasse com o pensamento um botão imaginário. Assistiu a uma lembrança distorcida, com cores vívidas em paleta alaranjada.
Ao fundo, escutou uma canção que não pertencia àquele momento. A voz masculina ecoava em uma agradável melodia, enquanto a cena rodava. Parecia estar picotada, pois palavra ou outra era cortada e os movimentos não pareciam naturais. Editara a recordação e agora a relembrava do seu jeito.
Não se sentia estúpida por mudar o ângulo daquele momento. Agora, era a diretora e comandava o diálogo, focando no detalhe que desejava. Podia torná-lo até mais magro, mais bonito, menos irritante e menos arrogante. Já sua própria imagem, preferia deixar como era, afinal compreendia bem seus defeitos e limitações. Suas falas, porém, eram reescritas. Responderia aquilo que gostaria - ou achava que deveria ter dito.
A sequência rememorada não tinha conclusão. Repentinamente, era encoberta por névoa e desaparecia enquanto os olhos se abriam. Da próxima vez que acessasse o arquivo mental daquela lembrança, ela seria diferente. Novos detalhes seriam incorporados, enquanto outros seriam descartados em uma nova reconstrução que não se comprometeria a ser fiel à realidade.
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