quarta-feira, 13 de abril de 2011

Pente amarelo

Amarrou os cadarços do sapato marrom desbotado, certificando-se da simetria perfeita ao comparar o lado esquerdo com o direito. Sorriu e se levantou do sofá, caminhando em direção ao banheiro, de onde tirou um pente amarelo do armário. Era bastante usado, um objeto fiel desde os tempos de trabalho na fábrica, quando o guardava no bolso do casaco, em dias frios, e no bolso da calça, quando a alta temperatura o obrigava a dispensar a blusa. Na calça, era possível perceber o pente, com suas linhas retas e os dentes grossos. Tinha mania de tirá-lo, seja de qual bolso fosse, na tentativa de ajeitar os cabelos, negros durante a juventude, mas já com alguns discretos fios grisalhos despontando.
Olhou para o pente durante alguns segundos. Há meses não lembrava do significado do acessório para sua vida, mais ainda do que para a vaidade. Afinal, ao tirá-lo do bolso, interrompia brevemente alguma tarefa, ou mesmo conversa, só para sentir a materialidade daquele amor e perpassá-lo entre os fios lisos, tal qual os dedos da mulher numa carinhosa e inocente carícia. O pente amarelo havia sido um presente de décadas atrás. Considerava muito mais do que uma lembrança: era uma materialização.
Lembrou-se de um certo sorriso, dos dentes grandes e brancos dos quais a dona tinha vergonha, tentando disfarçá-los toda vez que precisava expressar alguma emoção agradável. Ele achava essa timidez uma bobagem: se tanta moça fazia questão de ressaltar ainda mais certas partes anatômicas grandes, por que querer esconder os dentes? Brincava com ela, dizendo que deveria usar batom vermelho para mostrar o quanto eles eram brancos e bonitos. Ela ria. Só usava essa cor nos lábios quando saíam a sós, para um baile ou alguma festa na cidade.
Ela, que tinha cabelos crespos, adorava bagunçar o cabelo dele. De vez em quando, ele deitava a cabeça no colo dela e ela alisava os fios negros com as pontas dos dedos, como um pente. Numa dessas festas nas quais usava o contrastante batom vermelho, brincou na barraquinha de pescaria e ganhou um pente amarelo. Não era bonito, mas deu de presente ao noivo. Desde então, o pente virou símbolo de vaidade para os colegas de trabalho e de amor para ele.
A esposa falecera após mais de quatro décadas de casamento. Os cabelos ralos e brancos do viúvo não tinham mais os dedos suaves de sua senhora para afagá-los, mas ao menos três vezes ao dia o pente amarelo estava ali, no armário do banheiro, para mostrar que a rotina perdida ainda tinha algo em comum com aquele passado de muito trabalho, festas, sorrisos e afagos. Era o pente amarelo que colocava ordem em tudo.

Um comentário:

Nathália disse...

Muito bonito. Mesmo.