quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O retrato

Garoava muito naquela tarde fria de inverno. A mãe segurava o bebê no colo e chamava a atenção da outra filha, para que não se perdesse e prestasse atenção até entrar no consultório. Lá dentro, a menina tirou a jaqueta de chuva e olhou ao redor: havia muitos brinquedos espalhados pelo chão para distrair as crianças que esperavam serem chamadas para a consulta na sala do pediatra. A mãe se aproximou do balcão e falou com a recepcionista. Tinha duas consultas marcadas com o médico, da pequena Fernanda e da Juliana. A atendente pediu que aguardassem na sala de espera até serem chamadas.
Ao ver todos aqueles brinquedos, Juliana pensou que gostaria de esperar uma eternidade até entrar na sala para a consulta. Detestava ir ao médico, botar a lígua para fora e sentir aquele palito quase encostar na sua garganta. Fora quando o pediatra era um pão-duro que não dava pirulito nem bala para as crianças.
Entretida com um Aquaplay, ouviu a mãe chamar e hesitou em se levantar para entrar na sala. Depois de ouvir uma bronca, deixou o brinquedo de lado e seguiu a mãe. Doutor Geraldo cumprimentou a mãe e a menina, lançando um olhar para a bebê, que abriu os olhos assustados ao ver o estetoscópio se aproximando do seu corpinho. Juliana procurava algo com o qual se distrair enquanto o médico examinava a irmã e fazia perguntas à mãe. Ao olhar ao redor, imediatamente fixou os olhos em um quadro curioso. Era o retrato antigo de um homem e um menino sentados na soleira de uma porta. Ambos tinham um olhar melancólico, como se estivessem de castigo e não pudessem comer a sobremesa do jantar. O homem tinha um bigode engraçado, usava chapéu e vestia roupa preta; o menino parecia distraído, com seu boné de lado e as vestes surradas. 
O tempo passou e ela não tirava os olhos do retrato. O médico chamou seu nome, e só assim a distração se desfez - mas a curiosidade pelo quadro ainda chamuscava na sua cabeça. Enquanto abria a boca e dizia "aaaaahhhhhh", pensou que aquele homem poderia ser o pai do médico, e o garoto, o próprio Doutor Geraldo. O exame terminou e Juliana saiu muda da sala. Vestiu a jaqueta e seguiu a mãe até chegar ao carro. Nunca mais voltaram àquele consultório.
Muitos anos se passaram e Juliana já havia esquecido daquele dia. Caminhava sozinha por uma rua estreita quando um cartaz na porta do cinema chamou sua atenção. As letras garrafais diziam que naquela noite aconteceria a última sessão, pois o local seria fechado após décadas entretendo um público cada vez mais minguado. Esticou o pescoço, tentando enxergar qual seria o último filme, mas sem conseguir ver, entrou para saber. Surpreendeu-se ao se deparar com um cartaz ilustrado pela mesma foto do quadro que anos atrás a havia impressionado na sala do pediatra: o homem de bigode engraçado e o menino de olhar distante. Comprou o ingresso para a sessão e, algum tempo depois, ao sair da sala de exibição com os olhos cheios de lágrimas, suspirou e lançou um último olhar para o cartaz de O Garoto, como se quisesse fotografá-lo mentalmente para revelar durante o sonho.

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