quinta-feira, 25 de abril de 2013

Inesperado

Tudo o que queria era poder tirar-lhe a máscara, descobrir sua face do véu invisível que ocultava quem realmente era. E assim fez, por acaso, durante uma visita cordial. Na sala de jantar, o marido contava uma piada e arrancava gargalhadas dos convidados. Sem poder demonstrar o quanto patético considerava aquela piada racista, riu junto, abrindo um enorme sorriso. Como era bela quando sorria! Admirou-lhe discretamente, pois não queria que soubessem de sua paixão secreta pela mulher casada. 
Pensava que vivia feliz ao lado do jovem marido, mas no seu íntimo, sentia que ela sabia guardar segredos difíceis como a solidão e o desconforto. Quando ela se levantou, ainda rindo, e seguiu rumo a cozinha, com duas travessas nas mãos, ele a seguiu, segurando um pequeno frasco, para ajudá-la a desfazer a mesa. Sem perceber os olhos do admirador, parou de rir assim que adentrou a cozinha. Colocou as travesas em cima da pia e lançou um olhar cansado para o relógio na parede. Com receio de ser descoberto, escondeu-se atrás de um armário antigo e continuou a estudá-la silenciosamente. Ela se abaixou, abriu a porta do gabinete da pia e retirou uma garrafa sem rótulo com um líquido âmbar. Despejou a bebida friamente num copo e bebeu, como se fosse água. 
Enquanto os risos aumentavam na sala, seus olhos deixavam escapar lágrimas, que escorriam e desbotavam a maquiagem. Ao ver aquilo, ele não conseguiu se conter e aproximou-se retirando um lenço branco do bolso. Embora tivesse assustado com sua presença naquele momento, ela simplesmente sorriu. Deixou que lhe enxugasse a lágrima e sussurrou um pedido de desculpas pelas piadas de mal gosto do marido. Ele sorriu de volta e lhe deu um beijo, sentindo o gosto da bebida. Surpresa, tentou disfarçar como se nada tivesse acontecido e respondeu que já estava indo quando chamaram-lhe para ouvir a piada hilária que havia perdido. Após fitar o chão de maneira confusa, seguiu-a, para despedir-se de todos, agradecer pelo convite e pegar o paletó. Nunca mais voltaria a ver o casal de amigos, mas sentia-se satisfeito por vê-la como realmente era. E por beijá-la e ser correspondido.

2 comentários:

Poliana disse...

Meio da madrugada, sensibilidade entorpecida por aproximadamente 100 Decibéis de pressão sonora. O ritmo é hipnótico. É inquietante a solidão quando se está cercado por mais de 1000 pesoas.
Ler seu texto me resgata.
Felizmente volto a perceber as nuances.
Estou com "eles" mas não sou um "deles"
Será a sensibilidade uma benção ou uma maldição?
Foi ótimo poder por alguns momentos "viajar" com a leitura de sua crônica.


Anômima disse...

Uau, obrigada por mais este comentário. Espero poder escrever tantas crônicas que te despertem quanto esta. ;-)