Ela estava em pé, próxima à janela do quarto, observando o trânsito silencioso daquela manhã de domingo. Do segundo andar não tinha uma vista muito privilegiada do parque; conseguia ver o portão azul totalmente aberto, que permitia a entrada de atletas amadores e famílias com crianças ansiosas montadas em bicicletas. Enxergava também um banco de cimento e um casal de idosos ali sentado, o marido lendo o jornal e a esposa assistindo aos passantes.
Deitado na cama, ele parecia dormir profundamente. Sempre parecia estar em um sono interminável, e a única coisa que poderia acordá-lo seria a claridade da janela ou uma leve sacudida. Ela poderia ligar o rádio, usar o liquidificador ou bater a porta do banheiro que ele não acordaria. Não ouviria também um sussurro próximo desejando bom dia ou um convite para levantar e aproveitar aquele dia ensolarado e fresco. Aproximou-se suavemente e lhe deu um beijo no rosto. A barba por fazer arranhou os lábios quando ele se moveu naquele instante, um pouco assustado. Quando percebeu que era ela, abraçou sua cintura e acariciou os cabelos lisos, retribuindo o beijo que o acordara. Ela apontou para a janela e demonstrou por meio de gestos e expressões o quanto gostaria de estar lá fora, no parque. Ele compreendeu e sinalizou que preferia tomar o café da manhã antes de sair.
Enquanto ele se trocava, ela recordou uma canção antiga que o avô costumava tocar na vitrola. Entoou os primeiros versos, deus uns passos de dança e estendeu o lençol sobre a cama. Fechou os olhos e continuou a cantar, dando pequenas pausas para relembrar palavra ou outra que havia escapado à memória. Quando percebeu o que estava acontecendo no quarto, ele parou e a fitou atentamente. Sentiu-se excluído do mundo dela, deixado de lado, sem poder compartilhar o que parecia deixá-la em êxtase. Era a mesma sensação de quando era mais jovem e a família se reunia em frente à TV, elogiando estranhos que se apresentavam e lançavam olhares de sofrimento às câmeras.
Ela terminou a canção e abriu os olhos. Estava sozinha no quarto, com a cama ainda desarrumada. Foi à cozinha e o encontrou sentado à mesa, com o olhar fixo na parede de azulejos brancos. Suspirou e sentou ao seu lado. A partir daquele dia, não cantou em sua companhia, pois sabia o que ele mais queria: poder ouvi-la. Olhou em seus olhos, sorriu e deu uma mordida no biscoito. Era crocante, mas não fez barulho.
2 comentários:
:]
Muito bom mesmo.
Opa, uma crônica "banhada" a café. :)
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