quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O homem atrasado

Estava acostumado há anos com a mesma rotina. Sempre acordava atrasado, pois o relógio adorava pregar-lhe peças na hora de despertar, e sendo uma lembrança do pai, ainda que o irritasse com o tilintar tardio, jamais passou uma vez sequer pela sua cabeça aposentar a antiguidade e trocá-la por um alarme novo e funcional.
Após o desespero em constatar mais uma vez o atraso, levantava-se em um pulo e corria para o chuveiro. Depois de um banho frio para ajudar na circulação do sangue e das idéias, se vestia e corria para a cozinha. Aquecia o café, preparado na noite anterior, e devorava algumas rosquinhas. Estava pronto para sair pela porta e enfrentar mais um dia.
Ao chegar no escritório, socorria o chefe, que sempre brigava com o computador. “Só você mesmo para resolver esse problema, não sei o que faço para essa máquina travar tanto assim”. Mas o funcionário sabia: o chefe adorava fazê-lo de babá de computadores e qualquer problema que surgia, gritava pelo seu nome na esperança de que desfizesse algum comando absurdo, e muitas vezes fatal.
Cansado da rotina acomodada e desgastante naquele ambiente burocrático, no caminho de volta para casa resolveu refletir sobre seus reais valores como membro da sociedade. “Sou bem remunerado, mas não estou satisfeito com o que faço. Trabalho para o Estado em prol da população, mas sei que há muito mais injustiça do que legitimidade no meu ofício. É hora de mudar minha vida...”. Após constatar que passou tempo demais servindo aos injustos, decidiu pedir demissão no dia seguinte e, pela primeira vez, sedimentar desejos e sonhos para que pudessem se tornar algo sólido e palpável.
Levantou-se atrasado, mas não se apavorou. Aproveitou aquela manhã nublada e tomou um banho quente. Trocou-se vagarosamente, calçando seu sapato mais velho e confortável, e vestindo suas roupas mais desbotadas e macias. Saboreou o café feito na hora e mastigou lentamente a torrada quente. Resolveu fazer outro caminho para chegar ao imponente prédio público onde trabalhou durante tantos anos. Mais longo e mais arejado, o atalho às avessas permitia não apenas que contemplasse o céu, como também que risse das absurdas propagandas políticas que prometiam um futuro melhor caso a população cooperasse na difusão de ideais questionáveis.
Adentrou no edifício com um largo sorriso nos lábios, passou o cartão e subiu pelas escadas. Não precisaria de elevador naquele dia; trinta e dois andares não seriam tão fatais caso parasse de vez em quando para descansar. Ao chegar em seu departamento, dirigiu-se à sala do chefe e pediu demissão. “Você terá que cumprir uns dias a mais, sabe disso. E o que serei eu sem você?!”, desesperou-se diante do funcionário, que pouco se importava com os transtornos que sua atitude surpreendente pudesse desencadear. Queria sair daquele lugar sufocante e ironizar todas as expressões politicas estampadas em cada muro, cartaz e placa que visse pela cidade. Abandonou o chefe relutante, desceu pelo elevador, passou pela catraca, saiu pela porta-giratória, pisou na calçada úmida e respirou aliviado. A partir daquele momento, teria mais respeito por si mesmo, ainda que mais uma vez estivesse atrasado.

5 comentários:

Larissa Santiago disse...

ahhhh
aliberdadeee!
eh isso que a gnt sonhaa!
lindoooo adoroo!

Alexandre disse...

Sabe o que me veio na cabeça? "Joe contra o vulcão". :)

Sunflower disse...

na minha foi Beleza Americana.

ótimo, beijas

e nhá, saudes dos filhotinhos sim.

Tania Capel disse...

hum, isso poderia ser filmado mesmo! adorei! bjs

Persiolino disse...

eu me sinto assim as vezes sabe...e tenho medo q isso não se torne cronico...beijos