sábado, 21 de agosto de 2010

A contadora de história e o seu penacho

Não gostava muito da escola na qual estudei entre a quarta e a sexta série do primeiro grau, se bem que adorava alguns professores e suas aulas. Em uma dessas séries, tive um professor de língua portuguesa chamado Ferrari (apelidado de Brasília por alguns engraçadinhos), uma dessas pessoas que só se conhece uma vez na vida. A aula dele me dava sono, mas era um velhinho simpático - o uso do diminutivo não é porque a idade dele se aproximava à de Matusalém, mas simplesmente porque não gosto da palavra velho -, com fala mansa e jeito tradicionalista. Lembro que um dia, não sei bem por quê,  perguntei se conhecia alguém que sabia falar latim e ele respondeu com serenidade "eu sei falar latim". Já não era mais uma língua morta, pois professor Ferrari a ressuscitara.
Todo semestre era escolhido um livro que serviria de base para uma prova, e geralmente era a adaptação infanto-juvenil de uma obra clássica. Já havíamos lido As viagens de Gulliver e Sonho de uma noite de verão, e eu, uma nerd desde aqueles tempos, olhava a contracapa do livro e tentava adivinhar qual daqueles títulos listados poderia ser escolhido. Alguns meses atrás, eu tinha assistido a um filme chamado Feito cães e gatos e soube, pela clássica revista Set, que se tratava de uma adaptação modernizada de Cyrano de Bergerac. Como havia me apaixonado pelo filme, cruzei os dedos para que o livro fosse escolhido.
Algumas semanas depois, me encantei ao saber que essa seria a próxima leitura. Trata-se de uma adaptação em prosa de Rubem Braga (autor pelo qual cultivaria grande admiração uma década depois) da famosa peça de Edmond Rostand. Li o livrinho em três dias (um recorde para mim naquela época) e chorei muito no final. Sabe o que isso quer dizer? Cyrano foi o primeiro personagem literário que me deixou deprimida e me fez chorar. A história não se define como tragédia. É cômica na verdade. Mas o desfecho, belo e trágico, se encerra com o herói moribundo murmurando "o meu penacho", lembrando do adorno do chapéu até o último instante de sua vida. 
A prova de leitura estava próxima e descobri que era uma das poucas, senão a única, que estava preparada. Alguns alunos preguiçosos vieram me pedir ajuda, já que não poderiam ler o livro em apenas um dia e eu contaria do que se tratava para que a nota deles ficasse, pelo menos, na média. Inconformada com o desinteresse por algo tão sublime, concordei em virar contadora de história, pois assim passaria adiante o enredo e tentaria deixá-lo o mais fiel possível à obra. E foi o que fiz, até o final, rouca e satisfeita.
Entretanto, assim como o herói clássico enfrenta vilões antes de chegar ao final - neste caso, a prova -, uma professora se aproximou e achou um absurdo aquele monte de aluno não ter lido um livro e me fazer contar a história inteira para eles. E pior: eu tinha concordado com aquilo. A fofoqueira foi contar para outra professora de português, que me entregaria ao Ferrari por ter feito algo tão absurdo. Mas se ela realmente contou para ele, eu jamais soube, pois o assunto nunca mais veio à tona. Ou talvez o Ferrari soubesse e não deu a mínima. O importante é que me saí maravilhosamente bem na prova e fiquei fã de Cyrano. Em relação aos outros colegas, não saberia dizer se meu esforço valeu a pena. Porém, ao menos me ajudou a fixar a história ainda mais na cabeça.

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