domingo, 14 de dezembro de 2014

Anti-heroísmo

Dificilmente um iniciante em uma loja de quadrinhos arriscaria levar este título lacrado em meio às suas compras de autores pop e com traços coloridos e amigáveis. Caso não tivesse assistido a American Splendor, alguns anos atrás, não sentiria nem uma curiosidade remota para colocar o livro na cesta - a não ser que pudesse folhear antes para ver se realmente iria curtir.


Vejamos, a capa é feia - um homem de traços grosseiros vestindo uma regata branca, que deixa à mostra a grande variedade de pelos que lhe revestem a pele. A cara de tiozão tarado, acenando pervertidamente, com uma bandeira descorada dos Estados Unidos logo atrás. O título acima não ajuda muito: Bob & Harv - Dois Anti-Heróis Americanos.

Não é uma publicação para um público seleto, especial ou expert. Mas um pouco de conhecimento cinematográfico poderia ajudar na hora da compra. Ora, Anti-Herói Americano - ou American Splendor -, aquele filme fabuloso de 2003 que trouxe Paul Giamatti no papel mais incrível de sua carreira; mistura de documentário, drama e comédia, temperado com ironia e sarcasmo e recheado de crônicas de Cleveland (este sim seria um título mais forte e rentável).

O filme foi amor à primeira assistida. Revi no dia seguinte à leitura da HQ, o que me causou certa estranheza, já que ainda lembrava de muita coisa dele e os quadrinhos estavam fresquíssimos na minha memória, foi como se um complementasse o outro. Mas a adaptação entra fácil nas minhas listas de filmes dos anos 2000, filmes baseados em HQs, filmes com narrativas criativas e filmes que me apresentaram à venerável fonte da adaptação.

Não espere atos de heroísmo ou rendições água com açúcar. Esporros, ruminações sócio-filosóficas, crônicas cotidianas e reflexões de um homem comum, chamado Harvey Pekar, capturadas pelo seu olhar ácido e transcritas em papel, ilustradas pelo famoso amigo, o artista Robert Crumb.

Não basta ler porque ficou cult, porque é quadrinho para adultos ou é um dos expoentes da arte underground norte-americana. É para ler para ser divertir, concordar com Harv, intrometer-se na folga do amigo, adentrar em uma repartição pública multiétnica e tentar entender o diálogo na hora do almoço. Ver-se em uma história e desaparecer na seguinte. Porque pessoas comuns também têm histórias fantásticas. Afinal, quer algo mais fantástico do que convencer o próprio amigo desenhista a dedicar tempo às suas histórias enquanto sua rotina continua a mesma após meia dúzia de edições publicadas país afora?

Porque sem mudanças drásticas, a vida continua. Somos os mesmos de ontem, talvez apenas mais sonhadores, irritados ou bem-humorados.


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