segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

A alma embriagada de um corpo sóbrio

I don't even know where she lives
I've not seen her in 10 years...
9 months, 3 weeks, 4 days, 6 hours, 13 minutes, 5 seconds

Other girls went and other girls came
I can't get over my old flame
All my friends think I'm insane
I'm still in love with Emily Kane

(Emily Kane – Art Brut)

Ela limpou rispidamente os lábios no guardanapo de papel, levantou-se e seguiu em direção à estação. Fiquei ali atordoado, estático, com a mente confusa. As lembranças do passado retornavam como ondas explosivas. Formavam-se lentamente sobre a superfície marinha, ganhavam força e se tornavam belas, para logo em seguida explodirem e alcançarem a praia, cobrindo meus pés, fracas e covardes.
Dez anos depois, a onda ainda insiste em se formar. A água salgada turva ameaça, às vezes ruidosamente, mas eu corro à estante e abro um livro de artes. Estudo uma pintura de Monet, observo suas pinceladas e me deslumbro com sua capacidade em construir sombras. De repente, sou engolido pelas nuances escuras aos pés da dama de vestes brancas. Ela é imensa e impede que a luz solar me ilumine, como uma pessoa egoísta que reconhece o poder deslumbrante que tem sobre os outros. Fecho o livro e ligo a tevê.
Zapeio os canais até encontrar algo que pareça interessante. Um casal de velhos dança em uma sala, ele se aproxima e beija a mulher. Depois, ela esquece quem é o homem, deve ter amnésia ou algo assim, e o velho começa a chorar compulsivamente. Descubro que ela vive em um asilo e tem uma doença degenerativa, e o marido nunca desiste, está sempre ao seu lado persistindo para que retorne ao passado e se lembre de quando se conheceram. Desligo o aparelho com os olhos cheios de lágrimas e pego um caderno velho com muitas páginas já preenchidas. Procuro uma folha nova e começo a escrever.
A ponta da caneta toca o papel e a tinta verte, formando uma mancha azul, que se espalha como um câncer na página branca, virgem e ingênua. Começo a escrever sobre ela partindo, sobre as ondas, sobre Monet e sobre um filme qualquer na tevê. Não busco respostas, autopiedade ou culpados. Termino o texto com um ponto final.

6 comentários:

Rodrigo Carreiro disse...

...E agora Emily Kane, essa música sensacional, ficou na minha cabeça

Cristina disse...

Gostei da crônica. Interessante vc colocar referências a Art Brut e "Diário de uma paixão" num mesmo texto. ;]

Karine disse...

Belo texto.

;)

Gostei do seu blog.Tem muito a ver comigo.

^^
Beijinhoss!

Lu. disse...

Lindo. Lindo. Essa música realmente inspira diversos pensamentos (fantástica). E não me lembre de "Diário de uma paixão", pois prontamente fico com os olhinhos marejados, como seu narrador.

Emerson Souza disse...

Belissimo texto, e ponto final.

Tania Capel disse...

amei! de coração!

beijokas!!