terça-feira, 16 de março de 2010

O esquecido

Noite. Acordou com o lençol azul enroscado na perna esquerda e levantou a cabeça para ver as horas no velho relógio despertador que trouxera da casa do avô. Ainda faltavam alguns minutos para que despertasse, mas o calor não o deixaria dormir de qualquer maneira, então se levantou e abriu a porta do banheiro. O chuveiro pingava e o cheiro de mofo escapou para o quarto. Precisava dar um jeito naquilo, mas sempre adiava. O futuro era infinito, poderia esperar alguns litros d'água descerem ralo abaixo ou o fedor impregnar o ambiente de forma a fazer parte daquilo e ser absorvido pelas entranhas. 
Abriu o registro do chuveiro e tomou um refrescante banho frio. Não que quisesse a água fria, mas também não havia consertado o chuveiro desde a última tempestade que queimou a resistência. Sua vida era uma interminável sucessão de adiamentos - dos consertos no banheiro às ligações amorosas. O "tarde demais" fazia parte das respostas ditas por pessoas que um dia se importaram com ele, por cobradores de contas, por técnicos de consertos... era um clichê que lhe arrancava uma careta premeditada toda vez que escapava dos lábios de alguém.
Sua mãe sempre dizia para procurar um médico, fazer exame da cabeça e tomar uns remédios. 
- Coma bastante peixe que faz bem, senão vai ser tarde demais e você nem vai mais lembrar o próprio nome. - a mãe dizia em tom de conselho repreensivo. 
- Tá bom, tá bom. - respondia com a costumeira careta, sem saber se era por causa do conselho ou porque sentia náuseas só de pensar em peixe.
Saiu do banho e esticou os braços para alcançar a toalha, que não estava no gancho. Apertou os olhos e jogou os cabelos molhados para trás, esticando-os com as mãos compridas. Esquecera de pegar a toalha no armário. Bufando, abriu a portinhola do móvel e não a encontrou. Procurou alguma roupa velha com a qual pudesse se secar, mas não sabia onde poderia encontrar. Pensou no lençol suado que enroscou em sua perna, mas esqueceu onde ficava seu quarto. Decidiu ligar para a mãe e pedir ajuda, mas não lembrava o número do telefone. Sentou-se nu no chão úmido do banheiro, com os joelhos dobrados e os braços e a cabeça neles apoiados. Sua vida não tinha mais sentido e dormiria assim até lembrar porque havia se levantado naquela noite.

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